sábado, 18 de junho de 2011

A ciência e o declínio das Artes Liberais

PATRICK J. DENEEN | 01 JANEIRO 2011
Ser livre - liberal - era em si uma arte, algo que se aprendia não por natureza ou instinto, mas por refinamento e educação. No centro das Artes Liberais estavam as Humanidades, a educação de como ser um ser humano.

O estado escandaloso da universidade moderna pode ser atribuído a várias deturpações que penetraram fundo nas disciplinas de Humanidades. A universidade já foi o local exato das Humanidades: educação sobre os grandes livros; hoje, é mais provável encontrar lá doutrinação em Multiculturalismo, Estudos da Deficiência, Estudos Gays, Estudos Pós-Coloniais, um monte de categorias de raça, gênero e classe. As Humanidades atualmente parecem estar se desvanecendo em presença e poder na moderna universidade, em grande parte por causa de sua irrelevância solipsística, que previsivelmente aumentou o desinteresse dos alunos por elas.

Embora os críticos do sequestro das Humanidades possam estar inclinados a ver sua nova irrelevância como um motivo para comemorar, ela deveria ser uma profunda fonte de preocupação e o estímulo para esforços renovados em insistir em seu lugar central nas Artes Liberais, corretamente entendidas. Entretanto, para recuperar o lugar de direito das Humanidades, é necessário primeiro diagnosticar as origens de sua decadência. Estas origens precisam ser vistas em um quadro amplo, não começando simplesmente no clima liberacionista dos anos 60, mas tendo um pedigree que remonta a séculos, ao invés de décadas. A crise das Humanidades na verdade começou no início da Idade Moderna, com a idéia de que uma nova ciência era necessária para substituir a "velha ciência" das Artes Liberais, uma nova ciência que não buscasse mais simplesmente entender o mundo e suas criaturas, mas transformá-las. Este impulso deu origem, primeiro, a uma revolução científica na teoria e, por fim, a uma revolução científica, industrial e tecnológica, na prática. E o mais importante: ela viabilizou teorias de racionalização e padronização de método, ao mesmo tempo em que rejeitava as pretensões mais antigas da tradição e da cultura, do culto e do credo, do mito e da ficção. Ela deu origem à prosperidade, oportunidade, abertura, descoberta e tecnologia sem precedentes - contribuindo grandemente para o que Francis Bacon chamou de "o alívio da condição do homem." Mas, ao mesmo tempo, ao suprimir as Humanidades, ela tornou a humanidade cada vez mais sujeita a um tipo de hubris incontrolável. Infelizmente, a ciência moderna aspira a transcender o domínio da natureza rumo ao domínio da natureza humana, a última fronteira para seu domínio. A supressão das Humanidades levou inevitavelmente a um desdém gnóstico pelo humano.


Uma diferente concepção de conhecimento se encontrava anteriormente no coração da educação liberal. Ela era pré-moderna em suas origens, e era principalmente religiosa, cultural; sua autoridade emanando das tradições de fé e práticas culturais que uma geração buscava passar para a próxima. Ela ainda existe em muitos campi como um palimpsesto que um olho atento ainda consegue ler - os prédios góticos; os títulos de "professor," "deão," "reitor"; as becas flutuantes, vestidas uma ou duas vezes por ano em ocasiões cerimoniais - estas e outras presenças e práticas remanescentes são fragmentos de uma tradição mais velha, ainda bem viva na maioria dos campus universitários, mas lembretes, entretanto, do que um dia já foi o espírito animador destas instituições.

Durante séculos, as disciplinas humanísticas estiveram no coração da universidade; embora as ciências fossem parte integral da educação original nas Artes Liberais, estas últimas, sim, eram consideradas a principal via rumo a um entendimento da ordem natural e criada da qual a humanidade era a corôa. Reconhecendo o homem como o objeto mais merecedor de estudo, mas, pela mesma razão, o mais desafiador, esta tradição mais velha procurava adotar uma ética de humildade: buscar entender ao mesmo tempo em que admite a insuficiência da capacidade humana para algum dia entender completamente.

"A ciência mais velha" reconhecia que uma característica única do homem era sua capacidade para a liberdade: não movido pelo simples instinto, o homem era singular entre as criaturas por sua habilidade em escolher, em dirigir e ordenar conscientemente sua vida. Esta liberdade, como entendida pelos antigos e pelas religiões bíblicas, estava sujeita a mal-uso e excesso: algumas das histórias mais velhas de nossa tradição, inclusive a história da queda do Éden, falavam da propensão humana a usar mal a liberdade. Entender a nós mesmos era entender como usar bem nossa liberdade e especialmente como controlar apetites que pareciam insaciáveis. As Artes Liberais reconheciam que a submissão a estes apetites sem limites resultaria na perda de nossa liberdade e refletiriam nossa escravização ao desejo. Elas buscavam encorajar aquela tarefa difícil de negociar o que era permitido e o que era proibido, o que constituía o mais alto e melhor uso de nossa liberdade e quais de nossas ações eram hubrísticas, imorais, erradas. Ser livre - liberal - era em si uma arte, algo que se aprendia não por natureza ou instinto, mas por refinamento e educação. No centro das Artes Liberais estavam as Humanidades, a educação de como ser um ser humano. Cada nova geração era encorajada a consultar as grandes obras de nossa tradição, os vastos poemas épicos, as tragédias e comédias clássicas, as reflexões dos filósofos e teólogos, a Palavra revelada de Deus, os livros incontáveis que buscaram nos ensinar o que era ser um humano - sobretudo, como usar bem nossa liberdade.

A Ascensão da Multiversidade
No século XIX, as instituições americanas de ensino superior começaram a emular as universidades alemãs, dividindo-se em disciplinas especializadas e enfatizando a especialização e a descoberta de novos conhecimentos. As bases religiosas da universidade se dissolveram, a visão abrangente que a religião tinha oferecido não era mais um guia. O que tinha sido o princípio organizador para os esforços da universidade - a tradição da qual a faculdade recebia sua vocação - foi sistematicamente desmontada. Na parte central do século XX, uma ênfase renovada no treino científico e na inovação tecnológica - estimulados por investimentos maciços do governo nas "artes e ciências úteis" - reorientaram ainda mais muitas das prioridades do sistema universitário.

Quando os críticos conservadores de nossas universidades lamentam hoje o declínio da educação liberal, eles deploram sua substituição por uma agenda politizada tendente à esquerda. Mas a verdade mais profunda é que a educação liberal foi mais fundamentalmente substituída por uma educação científica fortalecida pelas demandas da competição global. Embora os conservadores talvez quisessem dividir a culpa com aquelas faculdades cada vez mais irrelevantes cujo pós-modernismo tinha se tornado uma forma de ortodoxia institucional antiquada, a verdade é que a ascensão deste tipo de faculdade foi uma resposta a condições que já estavam tornando a educação liberal irrelevante, um esforço auto-destrutuvo para tornar as Humanidades "atuais." Estes supostos radicais - na maior parte ex-filhos burgueses dos anos 60 - não eram agentes de libertação, mas antes, sintomas do negligenciamento das Artes Liberais no amanhecer de uma nova era de ciência reforçada por competição global.

Declarando a idéia da universidade estar se tornando um arcaísmo, o reitor da Universidade da Califórnia, Clark Kerr, saudou, em suas Palestras de Godkin, de 1963 (mais tarde expandidas e publicadas como o imensamente influente As Utilidades da Universidade), a ascensão de um novo sistema, a Multiversidade, uma entidade "central na industrialização posterior da nação, para aumentos espetaculares na produtividade com a riqueza subsequente, para a extensão substancial da vida humana e para a supremacia militar e científica mundiais." Os incentivos e motivações da faculdade seriam cada vez mais adequados ao novo imperativo científico de criar conhecimento novo: a instrução na faculdade enfatizaria a criação de trabalho original, e a cátedra seria alcançada através da publicação de um corpus de tal trabalho e a aprovação de especialistas avançados da área. Nascia um mercado de contratação e recrutamento universitários.

A Universidade deveria ser reestruturada para incentivar a motivação e o progresso. Os reformadores educacionais seguiram a liderança de John Dewey, ao lutar para substituir a "leitura de livros" com a ação. Entendeu-se que o passado oferecia pouca orientação em um mundo orientado em direção ao progresso futuro. Dewey sustentou que

isto que se ensina [hoje] é considerado essencialmente estático: É ensinado como um produto acabado, com pouca relação seja com os modos como foi construído ou com as mudanças que certamente ocorrerão no futuro. É, em grande medida, o produto cultural de sociedades que supuseram que o futuro seria bastante parecido com o passado, e é usado, entretanto, como alimento educacional em uma sociedade onde a mudança é a regra, não a exceção.

No coração da velha universidade estava a biblioteca, normalmente um belo prédio e quase sempre ocupando um lugar central no campus, a par de seu lugar central na transmissão da cultura e da tradição. Na exposição de Dewey, o lugar de preeminência era, ao invés disto, ocupado pelo laboratório. (Na verdade, John Dewey começou o Colégio Laboratório em Chicago, substituindo um currículo baseado em livros por um "aprendizado experimental".) Cursos centrais - formados originalmente pelo entendimento do que as gerações mais velhas tinham vindo a considerar necessário para a formação de seres humanos completos - foram cada vez mais substituídos ou por "requisitos de distribuição" ou nenhum requisito sequer, na crença de que os jovens alunos seriam livres para estabelecer seu curso de estudos de acordo com suas próprias luzes.

Em resposta a estas mudanças tectônicas, as Humanidades começaram a questionar seu lugar na universidade.

Os que a exerciam ainda estudavam os grandes textos, mas se o exercício permanecia o mesmo, o objetivo era cada vez menos claro. Ainda tinha sentido ensinar aos jovens os desafios instrutivos de como usar bem a liberdade, se cada vez mais o mundo científico parecia tornar aquelas lições desnecessárias? Seria possível uma abordagem baseada na cultura e na tradição continuar relevante em uma época que valoriza, acima de tudo, inovação e progresso? Como as Humanidades poderiam provar seu valor, aos olhos dos administradores e do público mais amplo?

Liberalismo e Libertação
Estas dúvidas dentro das Humanidades tornaram-se um canteiro fértil para tendências auto-destrutivas. Informados por teorias heideggerianas que davam primazia à libertação da vontade, primeiro o pós-estruturalismo, e depois o pós-modernismo criaram raízes. Estas e outras abordagens, embora aparentemente hostis às pretensões racionalistas das ciências, foram encampadas, devido à necessidade de se adaptar às reivindicações acadêmicas sendo feitas pelas ciências naturais, especialmente por conhecimento "progressista."

A faculdade podia demonstrar seu progressismo mostrando como eram retrógrados os textos; elas podiam "criar conhecimento" mostrando sua própria superioridade sobre os autores que estudavam, elas podiam exibir seu anti-tradicionalismo atacando os próprios livros que eram a base de sua disciplina. Filosofias que pregavam a "hermenêutica da desconfiança," que exultavam em expor o modo como os textos foram profundamente informados por preconceitos não igualitários, e que até questionavam a idéia de que os textos continham qualquer "ensinamento" que fosse, ofereceram às Humanidades a possibilidade de provar serem elas mesmas relevantes nos termos estabelecidos pela abordagem científica moderna. Adotando um jargão conhecido apenas por alguns "especialistas", elas podiam emular o sacerdócio científico - traindo a lei original das Humanidades de guiar os alunos através da herança cultural e dos ensinamentos dos livros clássicos. Os professores de Humanidades mostraram seu valor destruindo a coisa que estudavam.

Subjacente a esta auto-imolação estava uma aceitação do entendimento moderno da liberdade. Para as Humanidades, há muito a liberdade tinha sido entendida como uma realização da disciplina severa, uma vitória sobre o apetite e o desejo. Mas no século XX, as Humanidades adotaram o entendimento moderno e científico, que sustenta que a liberdade é constituída pela remoção dos obstáculos, pela superação dos limites, pela transformação do mundo - seja o mundo da natureza ou a natureza da própria humanidade. Assim, a educação passou a ser vista como um processo de libertação do auto-controle. A pós-modernidade procurou expor todas as formas de poder e controle, dando a entender que a condição humana ideal era a da completa liberdade - até a liberdade daquilo que um dia foi considerado humano.

E assim, no esforço de superar seus rivais científicos, as Humanidades se tornaram a mais ubiquamente liberativa das disciplinas, desafiando (embora de forma inepta) até a legitimidade do empreendimento científico. As condições naturais - tais como as inescapavelmente ligadas aos fatos biológicos da sexualidade humana - passaram a ser consideradas como "socialmente construídas," inclusive o "gênero" e a "heteronormatividade." A natureza não é mais um parâmetro em sentido algum, já que a natureza agora é manipulável. Por que aceitar qualquer um dos fatos da biologia, se estes "fatos" podem ser alterados? Se o homem tiver algum tipo de "natureza", então a única característica permanente que parecerá aceitável será a centralidade da vontade - a afirmação crua de poder por sobre quaisquer constrangimentos ou limites que poderiam limitar a ele e às possibilidades sem fim de auto-reprodução daquela.

As circunstâncias atuais apenas aceleraram a morte das Humanidades. Na ausência de defensores vigorosos de sua existência nos campi, hoje em dia, a combinação de exigências de "utilidade" e "relevância", paralelamente à realidade de orçamentos em retração, provavelmente tornarão as Humanidades uma parte ainda menor da universidade. Elas persistirão, de alguma forma, como uma vitrine de butique, um ornamento que indica respeito pela alta erudição, mas a trajetória das Humanidades continua sendo declinante.

Embora poucos professores de Humanidades agora consigam expor razões para protestos, eu prefiro pensar que as Humanidades de antigamente seriam capazes de se sair com uma argumentação poderosa contra esta tendência. O alerta seria muito simples: no fim do caminho da libertação está a escravidão. A libertação de todos os obstáculos é, no fim, ilusória, porque o apetite humano é insaciável e o mundo é limitado. Sem domínio sobre nossos desejos, nós seremos eternamente movidos por eles, nunca satisfeitos com sua posse.

A resposta da liderança de nossa nação e nossas instituições de ensino superior à recente crise econômica não é promissora, a este respeito. Ausente da tentativa de dominar a situação com ferramentas pseudo-científicas - os apelos por regulamentação, por melhor conhecimento técnico dos mercados financeiros - está uma simples porém esquecida verdade moral: Nós não podemos viver além de nossos meios.

Nas faculdades de todo o país, bancas de discussões organizadas por causa da crise econômica têm deplorado coisas como a ausência de supervisão, um regime regulatório leniente, a incompetência das entidades públicas e privadas em distribuir crédito ou desenvolver produtos financeiros complexos. Mas qual reitor ou líder de universidade admitiu que havia alguma culpabilidade da parte de sua própria instituição por falhar em educar bem seus alunos? Afinal de contas, foram os melhores universitários das instituições de elite da nação que ocupavam as posições de prestígio nas instituições financeiras e políticas de todo o país e que ajudaram a precipitar esta crise. Nossas universidades tomam crédito prontamente por seus estudiosos de Rhodes e vencedores do prêmio Fulbright. E aqueles universitários que ajudaram a cultivar um ambiente de ganância e golpes para enriquecimento rápido? Será que temos tanta certeza assim de que eles não aprenderam perfeitamente bem as lições que receberam na faculdade?

Para Recuperar a Educação Liberal
Se quisermos evitar os excessos da modernidade - o achatamento do espírito, uma ética do consumo, a dilapidação dos recursos do mundo - nós devemos tentar restaurar as Artes Liberais. Embora tenha restado uma grande miscelânea deFaculdades de Artes Liberais, a maioria das instituições de Artes Liberais se baseou profundamente nos pressupostos da perspectiva científica. A contratação e a promoção são feitas cada vez mais de acordo com as exigências da produtividade de pesquisa. Os departamentos e as faculdades de Artes Liberais operam à sombra das principais instituições de pesquisa, nas quais as prioridades aparentemente científicas dominam - e então elas internalizaram estas prioridades, mesmo que não se adequem bem ao cenário das Artes Liberais. O resultado é que muitas destas instituições aspiram incoerentemente ao status de elite macaqueando as universidades de pesquisa.

Entretanto, seu reestabelecimeno não está totalmente fora do alcance. Quando consideramos a história das Artes Liberais, reconhecemos corretamente uma variedade de instituições diferentes, a maioria com filiação religiosa (ao menos passada). A maioria foi formada tendo alguma relação com as comunidades nas quais foram construídas - fosse por suas tradições religiosas, pela a atenção dada aos tipos de perspectivas profissionais que a economia local permitiria, por uma íntima associação com os "anciãos" da localidade, por uma forte identificação com o lugar ou por um possível corpo estudantil atraído da vizinhança. A maioria procurava uma educação liberal não para libertar seus alunos do local e do "ancestral," mas para imergi-los nas tradições de que eles vieram, aprofundando seu conhecimento das fontes de suas crenças, buscando devolvê-los a suas comunidades, onde se esperará deles que contribuam para o bem-estar cívico e a continuidade.

Até o século XX, a maior parte das instituições de Artes Liberais clássicas fundadas dentro de uma tradição religiosa exigiam não só conhecimento dos grandes textos da tradição - incluindo (e especialmente) a Bíblia - mas um comportamento correspondente que constituía um tipo de "habituação" às virtudes aprendidas em sala de aula. A frequência compulsória na capela ou na missa, regras para a interação entre alunos e alunas, atividades extra-curriculares supervisionadas por adultos e os cursos obrigatórios de filosofia moral (muitas vezes ministrados pelo diretor da respectiva faculdade) buscavam integrar as Humanidades e os estudos religiosos da sala de aula com a vida diária dos alunos.

Baseada em um entendimento clássico ou cristão da liberdade, esta forma de educação foi empreendida com vistas a enfocar nossa dependência - não nossa autonomia - e nossa necessidade de auto-controle. Como o ensaísta e agricultorWendell Berry escreveu, os limites

não são a condenação que podem parecer. Pelo contrário, eles nos devolvem a nossa real condição e nossa herança humana, da qual nossa auto-definição como animais ilimitados há muito nos amputou. Toda tradição religiosa de que tenho conhecimento, mesmo reconhecendo nossa natureza animal, nos define especificamente como humanos - ou seja, como animais (se esta palavra ainda se aplicar) capazes de viver não só dentro de limites naturais, mas também dentro de limites culturais auto-impostos. Como criaturas terrenas, nós vivemos, por necessidade, dentro de limites naturais, que podemos descrever por nomes tais como "Terra", "ecossistema". "bacia hidrográfica" ou "lugar." Mas como humanos, nós podemos escolher responder a esta localização necessária por meio dos auto-limites aos quais a sociabilidade, o bom governo, a parcimônia, a temperança, o zelo, a gentileza, a amizade, a generosidade e o amor obrigam.

Uma educação baseada em um conjunto de condições culturais partiria da natureza e operaria em concordância com ela, por meio de atividades como a agricultura, o profissionalismo, o serviço religioso, a ficção, a memória e a tradição; ela não buscaria a rendição da natureza. Ela adotaria como responsabilidade fundamental a transmissão da cultura - não sua rejeição ou transcendência. Evitaria o tipo de filosofia desenraizada recomendada por uma educação baseada num mero "pensamento crítico" e não se curvaria à trajetória intelectual exigida por nosso sistema econômico global.

Por fim, uma educação liberal restaurada não seria uma libertação do "ancestral" ou da natureza, mas uma educação sobre os limites que a cultura e a natureza nos impõe - uma educação sobre como viver de um modo que não nos tente rumo a formas prometéicas de auto-engrandecimento individual e generacional. E particularmente numa era em que nos familiarizamos cada vez mais com as consequências de viver somente no e para o presente, quando muitos de nós não conseguimos viver dentro de nossos meios -seja financeira ou ambientalmente - , nós nos beneficiaríamos com uma restauração do entendimento correto da liberdade: não como uma libertação dos limites, mas antes como uma capacidade de nos controlarmos. Este auto-controle, igualmente recomendado por tradições antigas e religiosas, torna possível uma forma de liberdade mais verdadeira - liberdade da escravidão em relação a nossos apetites e à força destruidora deles.




Patrick J. Deneen é professor adjunto de Ciências Políticas na Universidade de Georgetown, onde ocupa a Cadeira de Estudos Helenisticos Markos e Eleni Tsakopoulos-Kounalakis e é diretor-fundador do Fórum Tocqueville sobre as Raízes da Democracia Americana.

Tradução e links do blog DEXTRA.

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O Supremo, de mal a pior

PERCIVAL PUGGINA | 18 JUNHO 2011

Saibam os leitores: não faltariam aos membros da Corte preceitos constitucionais relativos à proteção da infância e das famílias para uma decisão que travasse a propaganda da maconha.

Digo e provo. Cada povo tem o Supremo que merece. Não é por outro motivo que convivemos com tantas decisões chocantes, contra as quais nada, absolutamente nada se pode fazer porque expressam a vontade da mais alta Corte. A Corte... Já escrevi sobre isso. Uma das características de toda corte é seu alheamento em relação à realidade. É um alheamento que começa no luxo dos salões, nas mordomias dispensadas aos cortesãos, nas necessárias garantias que lhes são concedidas com exclusividade em relação à caterva circundante. E que, como não poderia deixar de ser, se reflete na visão de mundo e nos critérios de juízo. A corte contempla a realidade com luneta de marfim e ouro, enquanto balança os pés à borda de uma cratera lunar, lá no mundo onde vive. Marfim e ouro? Sim, marfim e ouro. Afinal, aquela Corte tem 11 membros, um orçamento de R$ 510 milhões (um sexto do orçamento da Câmara dos Deputados com seus 513 membros) e cerca de 2600 funcionários, entre servidores concursados, terceirizados e estagiários (cf. Luiz Maklouf Carvalho, Revista Piauí, ed. 57).


Por outro lado, dado que cada povo tem o governo que merece, sendo o governo quem escolhe os ministros do Supremo, a frase que se aplica àquele, faz-se vigente, também, para este. Lula cansou de nomear ministros para o STF. A presidente Dilma tem mais quatro anos para fazê-lo. Antes dos dois, FHC era adepto do mesmo relativismo e materialismo. Quod erat demonstrandum: duas décadas de governos com esse perfil deu-nos o STF que temos. Então, entrega a Amazônia para os índios; então, solta o Battisti; então, véu e grinalda para as uniões homossexuais; então, marche-se pela maconha. E preparemo-nos para o que vem por aí, pois desse mato continuarão saindo cobras e lagartos. Está tudo dominado!

Não conheço um único pai, uma única mãe que chame seu filho e lhe diga: "Filhão, já que hoje é sexta-feira, toma vinte e vai comprar uma erva". Ou então: "Guri, vai fumar esse baseado no teu quarto que eu não suporto esse cheiro". Não. Todo o esforço vai no sentido de alertar os filhos para os riscos do consumo de uma droga cujos menores danos ocorrem na saúde dos pulmões, na redução da atividade cerebral e da intelecção, na perda de interesse pelos estudos, e na percepção de tempo e espaço. E cujos maiores prejuízos advêm da motivação para o uso de substâncias ainda mais tóxicas e que geram dependência muito maior. Quem não está no mundo da lua sabe que raros são os usuários de outras drogas que não entraram nesse buraco sem fundo pela abertura proporcionada pela cannabis.

Consultado sobre a marcha da maconha, que faz STF? Decide que o que estava em julgamento era a liberdade de expressão... E a maconha ganha as ruas. Desnecessário continuarem marchando. Podem os chapados parar de caminhar. Nada consagrará mais o consumo e o brindará com maior tolerância do que essa decisão do STF! A partir dela, ficou muito mais difícil aos pais convencerem os filhos de que aquela substância cuja marcha foi liberada lhes será nociva ou, até mesmo, fatal. Note-se que a posição ocupada pela maconha na longa e mortal galeria das drogas, é absolutamente estratégica e se baseia, exatamente, na difusão da ideia de que ela "faz menos mal do que o tabaco". O tabaco faz mal, sim, e por isso está banido do mundo publicitário, mas ninguém saiu dele para a cocaína ou para a heroína.

Os membros do STF têm sido perfeitamente capazes, para atender seus pendores, de espremer princípios constitucionais e extrair deles orientações que contrariam a letra expressa e a vontade explícita dos constituintes. Mas sequer cogitaram de fazer o mesmo em relação à marcha que propagandeia a maconha. Saibam, contudo, os leitores: não faltariam aos membros da Corte preceitos constitucionais relativos à proteção da infância e das famílias para uma decisão que travasse a propaganda da maconha. Bastaria que houvesse em relação ao bem estar social um apreço superior ao que eles demonstram por suas próprias filiações filosóficas. Podem começar a marchar, agora, pelo óxi, pelo crack e pela cocaína. A Corte vai deixar. Ela está nem aí.

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quinta-feira, 16 de junho de 2011

Goethe e o andrógino


A ânsia alquímica de aperfeiçoar a natureza, a própria Criação, é o escudo da entidade que preside os cultos satânicos das sociedades secretas, Baphomet. Seu lema - solve et coagula - é essa manifestação da vontade demoníaca de perfectibilismo.

É essencial compreender o simbolismo do andrógino na obra FAUSTO, de Goethe, para captar o significado do poema. Vimos em artigos anteriores que o livro é um épico que cantou o mal em toda sua extensão, daí porque é o cântico de louvor por excelência da modernidade. A honestidade intelectual de Goethe se agiganta e ele nada oculta de suas intenções, até porque ele fazia a crônica dos tempos. O cântico ao mal ésobretudo o cântico ao seu símbolo maior, o microcosmo (Fausto, o personagem, recebe a alcunha de Dom Microcosmo, enquanto Mefistófeles a de Dom Satã).

A representação do microcosmo é o pentragrama, cuja imagem se tornou o estandarte da modernidade e, desde o século XVIII, se espalhou e ocupou lugar de destaque em toda parte. O comunismo tem no pentagrama seu signo indissociável. Nós próprios vimos acontecer no Brasil essa troca dos símbolos sagrados pelo do Inimigo na Proclamação República. O Escudo Imperial, que tinha na cruz a sua marca, foi substituído pelo Escudo da República. O microcosmo irradiando sua marca a partir do símbolo máximo do Estado que então se formou, no pentagrama que ocupa toda sua área. No momento o partido governante tem também no microcosmo o signo de sua presença no poder.

Na expressão épica da poesia de Goethe vemos que essa tentativa de tornar o homem (e o diabo) o centro da criação, no lugar de Deus, está associada à simbólica alquímica do solve et coagula (dissolve e combine), o Rebis que se expressa na união entre o Rei e a Rainha. O solve exprime é a própria rebelião contra a Criação (a negação) e ocoagulaa arrogância perfectbilista do homem no lugar de Deus. Note-se que aqui não se trata da união entre dois seres de sexos opostos, separados pela vontade de Deus, mas a do suposto princípio masculino e feminino que se encontra em cada indivíduo. É uma espécie de casamento interior, que se expressa também num ato físicomasturbatório, que o personagem Fausto pratica em vários momentos durante a narração do poema, particularmente importante quando ele desce aoReino das Mães e tem nas mãos a própria chave lhe dada por Mefistófeles, que afinal é seu próprio falo, sua própria potência vital. É daí que nascerá a figura feminina de Helena, personagem central do drama fáustico.

Assim, ao ascético cristianismo, que procura respeitar e contemplar a Criação e ter por orientação os ensinamentos sagrados contidos nas Escrituras, com sua moral estrita e conduta sexual que supõe o homem e a mulher criados por Deus enquanto opostos complementares, os modernos irão construir uma cosmologia e uma moral oposta, produto na negação, e dentro desse processo a androginia - e a sua expressão prática, o homossexualismo militante - será a sua manifestação mais aguda. E não se diga que isso é de hoje. No século XX vimos chegar o seu auge. A figura emblemática de Thomas Mann (e sua obra), que imita e tem em Goethe o guia artístico e espiritual, descreve como isso aconteceu na máxima dimensão. A tragédia pessoal de Mann é a do homem fáustico e o homossexualismo está presente na sua vida como libido dominante, na temática da sua obra e também na vida dos seus filhos. A tragédia pessoal de Thomas Mann e da Alemanha se confundem, que é a tragédia predita na obra de Goethe (esse é um assunto, vida e obra de Thomas Mann, que no momento estudo com afinco e, no tempo oportuno, irei abordá-lo com mais detalhes. A obra e a vida do homem de Lubbeck como espelho e crônica da tragédia do século XX).

A ânsia alquímica de aperfeiçoar a natureza, a própria Criação, é o escudo da entidade que preside os cultos satânicos das sociedades secretas, Baphomet. Seu lema - solve et coagula - é essa manifestação da vontade demoníaca de perfectibilismo, dando materialização simbólica. Negar tudo que vem de Deus para recriar: a construção da Segunda Realidade é vislumbrada por Cervantes no magnífico Dom Quixote. Esta obra só foi lida por Thomas Mann quando já estava no exílio, a bordo do navio que o levaria à América pela primeira vez, aos 59 anos. Naquele instante o curso da obra do autor foi modificado e vieram então suas criações máximas, o DOUTOR FAUSTO e o notável O ELEITO.

(Há um elo entre a figura de Baphomet e o islã. A própria palavra teria sido uma corruptela de Maomé. Veja-se que o microcosmo é uma estilização do Crescente, expresso na forma minimalista da estrela cadente, a Vênus. Não podemos perder de vista que o islamismo é uma seita gnóstica cristã, nascida para negar a ortodoxia. Isso também foi percebido por Cervantes, cuja obra é a denúncia do domínio do islamismo sobre o território cristão, inclusive e sobretudo na dimensão do poder de Estado. O Estado moderno nasceu modelado pelo Estado islâmico, que é deificado como a própria manifestação sagrada, fazendo dele um substituto de Deus. Cervantes foi profético. É de se notar que a contribuição à ocidentalização do islamismo se dá na transferência da lei do Corão para a constituição nascida da vontade de Dom Microcosmo, o próprio homem moderno. A lei positiva passará então é ter a força da lei natural, em oposição ao Direito Romano fundado em Aristóteles, que vigia até então.)

Em artigo anterior (Os Filhos de Fausto) procurei mostrar que há um elo entre os três nascimentos narrados no poema: o filho humano de Fausto com Gretchen, assassinado pela própria mãe, o filho da filosofia alquímica, traduzido magistralmente no personagem Homúnculo, que sucumbe por não ter como sobreviver no universo manifesto, e o filho de Helena e Fausto, um ser inflado que se confunde com Eros e com Mercúrio, o próprio Baphomet. Ele tem a psicologia do próprio Hitler avant la lettre, o ego inflado e desprovido de condições de sobrevivência. Ele se precipita de sua altura alucinada, do seu "sonho impossível" (como não evocar Cervantes?) de grandeza, que é de crueldade, de maldade, de tudo que não presta. Ao morrer deixa de herança a Fausto sua pele de serpente, que eram sua vestes. Esta identificação com o mal é um dos momentos mais criativos da peça. "Esses gracejos muito sérios", como ao Fausto se referiu Goethe, não deixaram nada de fora da dimensão trágica dos tempos modernos.

Sublinho aqui como se deu o nascimento Eufórion. O intercurso entre Fausto e Helena ocorre na "Gruta", em oposição à concepção do filho natural de Fausto, precedido de seu delírio amoroso na "Floresta e Gruta". O segundo símbolo é uma expressão para se referir à genitália feminina. O primeiro é claramente uma referência ao coito anal. Afinal, Helena e Mefistófeles são um único e mesmo ser e no momento do intercurso Mefisto estava fantasiado de Fórquia, o horrendo ser hermafrodita. Goethe nos conta de maneira assaz realista que Eufórion é concepção alquímica de Fausto em coito homossexual, possuído pelo próprio diabo. É esse o filho da modernidade, é a própria modernidade. Por isso que a agenda da causa gay é a decorrência natural dos tempos modernos e o renascer fortalecido das idéias dos albingenses, destacas na obra de Hilaire Belloc resenhada por mim (As Grandes Heresias). Recupero aqui a citação que sublinhei na resenha, referindo-se ao albingenses:

"Todos os sacramentos foram abandonados. Em seu lugar, um estranho ritual foi adotado, que envolvia a adoração do fogo, chamado 'a consolação', por meio do qual acreditava-se que a alma era purificada. A propagação da espécie humana foi atacada; o casamento era condenado e os líderes da seita espalhavam todo tipo de extravagâncias que se podem encontrar pairando sobre o maniqueísmo e o puritanismo, onde quer que apareçam. O vinho é mal, a carne é má, a guerra era sempre absolutamente má, e assim também a pena capital; mas um pecado sem perdão era a reconciliação com a Igreja Católica".

Hoje essa agenda integral está na ordem do dia. A procriação humana é tida como indesejável, como ecologicamente incorreta, como empobrecedora (reduz a renda per capta), como a fonte do mal. Daí provêm políticas como a do aborto, do gayzismo, do ambientalismo e toda militância contra as coisas sagradas. Era assim no início do século XX, como registrado por Thomas Mann, e deu no que deu. O que nos espera agora, no momento em que a mesma agenda está na ordem do dia? Vivemos tempos de grandes perigos.

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Uma tirania do bem

BLOG DO MR. X | 10 JUNHO 2011

Se quer convencer alguém de alguma coisa, afirme que o planeta está esquentando, ou que é para ajudar as criancinhas do Nordeste, ou qualquer outra idéia bacana. É batata. As pessoas farão o que você quiser.

Proibiram as sacolinhas de plástico no supermercado, e a maioria das pessoas apoiou a medida. Da mesma forma, a tal lei anti-homofobia, que censura o discurso crítico contra os homossexuais, é aplaudida pela maioria das pessoas bacanas, e as leis antirracismo, que censuram o discurso sobre raça, já foram mais do que aprovadas com louvor pela maior parte da população.
É censura da brava: fale qualquer coisa que fique fora da norma do "politicamente correto", e você poderá perder seu emprego, ter sua carreira arruinada, ter que abandonar os estudos, quem sabe até ser preso. Mesmo que você seja umPrêmio Nobel.

Imagine que estivéssemos sob um governo de direita e saísse uma lei dizendo "é proibido falar mal da família cristã". As pessoas sairiam nas ruas para protestar, cantores da MPB criariam músicas satíricas cheias de insultos, e seria revogada em dois dias. Mas crie uma lei de censura ou proibição "do bem", isto é, progressista, e todos estarão de acordo.

Em uma entrevista décadas atrás, Aldous Huxley, autor de "Admirável Mundo Novo", disse que achava que ditaduras do futuro teriam uma diferença: os tiranizados estariam felizes e aplaudiriam a própria opressão. Ele estava correto. A grande sacada dos progressistas e globalistas foi primeiro convencer as massas de que alto é baixo, preto é branco, socialismo é liberdade, e que a tirania que sofreriam era para o seu próprio bem. Se quer convencer alguém de alguma coisa, afirme que o planeta está esquentando, ou que é para ajudar as criancinhas do Nordeste, ou qualquer outra idéia bacana. É batata. As pessoas farão o que você quiser.

Afirme que existe "uma causa maior", e você vai poder entrar no governo, roubar, sair do governo, enriquecer ilicitamente, e depois voltar novamente ao poder, sob aplausos ou ao menos total indiferença do público. Ensine que os criminosos são coitadinhos vítimas do sistema e que a culpa de tudo é da burguesia, e as pessoas aceitarão níveis hediondos de violência urbana sem reclamar. Alguns até se sentirão culpados e acharão o assalto e estupro justificado, e pedirão perdão a seus estupradores!

Em San Francisco, querem proibir a circuncisão. Ativistas gays até produziram uma história em quadrinhos que vem sendo acusado de antissemita. (San Francisco é a meca dos gays, e parece que eles preferem pênis não circuncisado). Mas imagine que a cidade quisesse proibir os brincos, ou os piercings, ou as tatuagens, ou até o corte do pênis inteiro no caso dos transsexuais. Seria um escândalo! Mas como é com religião, tudo bem. (Outra curiosidade do caso é a seguinte, dizem que é em nome das criancinhas, mas e o aborto? Circuncisar não pode, mas abortar sim? Estranho.)

Imagine um país no qual o governo colocasse produtos tóxicos na água ou no ar, drogando e entontecendo as pessoas para que se tornem pacíficos cordeirinhos. Sinistro, não é? Mas faça o contrário, aja do modo progressista e terá uma multidão de pessoas marchando pelas ruas em luta pelo sagrado direito de se intoxicar! Inunde os produtos alimentícios de hormônios e aditivos, mas coloque tudo numa embalagem bacana e venda numa loja da moda a preços abusivos e as pessoas vão amar e comprar mais e mais...

Quando a economia piorar e as massas começarem a ficar intranquilas, invente uma guerra ou algum escândalo sexual bobo para distrair. Aqui nos EUA, o grande escândalo do momento é de um deputado que mandou fotos de seu pênis para suas fãs no Twitter. Não se fala de outra coisa (o povo americano é meio infantilizado e adora escândalos sexuais). Enquanto isso, a dívida pública cresce, o dólar cai, o desemprego aumenta...

Do jeito que vai, o governo global em breve se tornará uma realidade. E as multidões sorrirão!

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QSS

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Deter o PLC 122 é batalha decisiva na defesa da família

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Em 24 de maio, as bancadas evangélicas e católicas do Congresso Nacional pressionaram o governo federal e ameaçaram abrir a CPI para investigar o ministro da Casa Civil, Antonio Palocci, de enriquecimento ilícito e tráfico de influência. Diante disso, a presidente Dilma Roussef suspendeu a distribuição do polêmico Kit “Escola Sem Homofobia” na rede pública de ensino do País. Em sua fala[1], quando questionada pela imprensa, a presidente pareceu reviver os momentos mais tensos da campanha eleitoral de 2010, acuada pela pauta “dos valores” trazida pela sociedade, e que tanto a assombrou especialmente na transição do 1º e 2º turno[2].

Ao conversar com os jornalistas, Dilma Roussef disse que não irá permitir nenhum órgão do governo fazer “propaganda de opções sexuais”. E mais: “Não podemos interferir na vida privada das pessoas!” Chegou a afirmar que não assistiu aos vídeos polêmicos de doutrinação homossexual, tendo visto apenas alguma coisa do que foi apresentado na televisão. E concluiu dizendo: “Não concordo com o Kit”, mas “nós lutamos contra a homofobia.” Foi uma fala mais uma vez contraditória, sem convicção, muito imediatista, fala para apagar incêndio, sem coerência com o propósito do governo implantar o PNDH3 no País. O ex-presidente Lula teve de emergir para os holofotes midiáticos, repentinamente para vir em socorro de sua apadrinhada e pedir aos senadores da base governista que poupem Palocci de uma CPI. O governo perdeu vários aliados e se desgastou muito com a votação do Código Florestal. A presidente então recuou, como fez na campanha eleitoral, para evitar um desgaste ainda maior.

Os episódios recentes demonstraram que é possível os cristãos brasileiros manterem-se firme na defesa dos princípios e valores que buscam salvaguardar a dignidade da pessoa humana e a estrutura natural da família, seriamente ameaçadas pelo ideário do PNDH3, que o governo está disposto a tornar política de Estado, num processo em que o laicismo se torna “uma ideologia irreligiosa ou anti-religiosa”[3], para também reforçar a cultura anti-cristã em curso. Os deputados e senadores das bancadas evangélicas e católicas, pressionaram e obtiveram um efeito considerável, neste momento crucial, e se posicionaram inclusive levando a população às ruas, como na Marcha contra o PLC 122, promovida em 1º de junho, em Brasília.[4]

Deter o PLC 122 é assegurar a liberdade de expressão e religiosa no Brasil, do contrário, aqueles que hoje são minoria vão se impor ainda mais, com mais insolência, pois querem garantir não apenas a tolerância, mas forçar cada vez mais a adesão ao homossexualismo, criando mecanismos, alguns sutis, outros mais ousados, para que um número crescente especialmente de jovens aceitem o homossexualismo, mas – o que é mais grave – sejam estimulados a isso, daí a estratégia do KIT, para efetivar a doutrinação homossexual nas escolas, com material pago com dinheiro público.

Apologia ao que viola a essência e a natureza da pessoa humana

O fato é que “a batalha contra a família está entre as mais graves batalhas contra o cristianismo, em particular contra os católicos”.[5] Nesse sentido, “a homossexualidade tornou-se uma arma política e o envolvimento dos homossexuais na vida política, para alcançar seus intentos, tornou-se uma prioridade”.[6] E para isso surtir efeito, a médio prazo, faz-se necessário difundir nas escolas a ideologia de gênero, para quebrar as resistências contra a cultura que quer se impor. A educação sexual então está imbuída fortemente desta ideologia contrária à família, com uma visão reducionista da dimensão da pessoa humana. “Ora, existem apenas duas identidades sexuais: masculina e feminina. Não existe identidade homossexual. A homossexualidade pertence ao grupo das tendências sexuais, que são numerosas e variadas no psiquismo humano”[7] e “a sua gênese psíquica continua amplamente inexplicada”.[8] É certo que permanecem interrogações sobre as causas profundas de tais tendências, mas há sinais evidentes de que institucionalizá-las é desconhecer com mais profundidade a essência e a natureza da pessoa humana, e mais ainda: agravar os fatores da violência contra o ser humano, em todos os aspectos.

A crise da identidade em nosso tempo se explica “numa sociedade sempre mais anônima”.[9] Daí o grande mal-estar de muitos diante dos apelos na promoção da homossexualidade, pois sabe-se que se trata de um movimento de apologia e não apenas de não discriminação. Apologia a uma condição contrária ao que vai no âmago da maioria das pessoas, uma condição que torna a pessoa estranha de si mesma, nas circunstâncias em que se sente muito mais vulnerável como objeto e não sujeito de uma relação que tende a ser mais perversa e desumana, pois “o indivíduo não pode se socializar e enriquecer o vínculo social senão a partir de sua identidade (de homem e mulher)”.10 Daí também a crise da identidade (que é também a crise dos vínculos, no melhor sentido da expressão religiosa – que visa re-ligare). “Não é pensável que seja possível socializar-se em função de uma tendência sexual, a não ser sob pena fazer regredir e de perverter o vínculo social”.[11] E então, a escola, que deveria complementar, do ponto de vista pedagógico, a integração da pessoa com sua comunidade, passa – com a educação sexual libertária – a desagregar a pessoa, a partir das premissas utilitárias, hedonistas e individualistas. O ideário proposto pelo PNDH3 perverte pois a finalidade social das instituições nascidas para defender a pessoa daquilo que a despessoaliza. Com uma educação sexual assim, a escola se torna um lugar perigoso, um barril de pólvora que certamente irá explodir com danos sociais inimagináveis.

“Ideologia de gênero”: o pano de fundo cultural do PNDH3

Da mesma forma que a obsessão da supremacia racial motivou a mais dolorosa experiência de dominação política com o nazismo, o afã da sociedade anarco-individualista de transgressão e libertação dos condicionantes biológicos da pessoa, pode nos levar a outras mais terríveis situações de desespero, que muitos ainda ignoram, e cujas conseqüências já estão visíveis em nosso meio, bastante conturbado pela influência do feminismo radical.

Na “perspectiva de gênero”[12], “a realidade da natureza incomoda, perturba e, assim, deve desaparecer”.[13] Com isso, se espera um tempo novo, em que homem e mulher não sejam mais condicionados por “papéis culturais” e vivam inteiramente livres para usufruir uma vida sem nenhuma espécie de opressão. Tal a promessa da nova ideologia, como as do passado, que fracassaram justamente ao apresentar um topos fora da realidade humana. “’Quando o nacional-socialismo tiver reinado por bastante tempo’, declarou Hitler certa vez, após o jantar, ‘não será mais concebível uma forma de vida diferente da nossa’”.[14] O anarco-individualismo do feminismo radical é, portanto, a nova manifestação de um idealismo que mais uma vez quer arrastar a humanidade às piores patologias políticas, pois a “crueza sexual” de tal ideologia “vive nos grandes sistemas especulativos do idealismo”.[15] Uma ideologia que quer desenraizar a pessoa daquilo que a constitui como ser humano, desterritorializá-la da instalação natural da família, imprescindível à sua realização como pessoa, inseri-la em ambientes hostis em que cada vez mais fica difícil se identificar e, portanto, torná-la mais fragilizada e perdida de sua própria realidade como ser humano.

Doutrinação homossexual como estratégia para o desenraizamento cristão

Depois de alguns “anos de preparação, de clarificação ideológica e de experiências táticas”[16], a exemplo do que disse Joachim Fest sobre Hitler, percebemos muito nitidamente aspectos da proximidade metodológica do totalitarismo nazista com o que busca os promotores do PNDH3, com uma política de Estado que tem como objetivo o profundo desenraizamento cristão, como realmente nunca houve na história do País. Para isso, a doutrinação homossexual nas escolas faz parte desta tática, que funcionou para consolidar movimentos totalitários políticos do passado e quer agora atualizar a estratégia de alcançar especialmente a juventude para a adesão a um idealismo de evasão da realidade, com conseqüências altamente imprevisíveis para toda a sociedade.

A doutrinação homossexual nas escolas quer reforçar a idéia de que “a inversão é uma coisa tão natural”[17], e de que os papéis sexuais são apenas construções culturais do qual é preciso se libertar, para vivenciar uma felicidade euforizante e fugaz, daquela intensidade hedonista exigida pela sociedade de consumo. Trata-se também da antiquíssima estratégia de uma lógica de poder anti-natalista, quando “o legislador (…) obtem baixa taxa de natalidade, mantendo homens e mulheres separados e instituindo relações sexuais entre homens”.[18]

“Estamos outra vez perante um novo começo”[19]

Na contra-mão deste rolo compressor ideológico, mais uma vez, os cristãos (evangélicos e católicos) são chamados a fazer contraponto, mesmo “quando já não há um ambiente cristão na sociedade”[20], e muitas vezes os cristãos mais conscientes se sentirem “a Igreja de uma minoria”.[21] “É hora de união de todos os cristãos, deixando de lado o que nos divide, e deixando de nos ferirmos mutuamente, para defender a Lei santa de Deus.”[22]

Na afirmação de princípios e valores cristãos, numa época como a nossa, de tão grandes apreensões e promissões, o discernimento nos leva à luz de Cristo, pois Ele “é sempre nosso contemporâneo”.[23] Somos chamados novamente a dar testemunho da resposta cristã aos complexos desafios e aos impasses agudos da atualidade. A obsessão prometéica de uma felicidade que vem da rebeldia, permanece até hoje, como uma terrível tentação. “E a tentativa de ultrapassar a condição humana exclusivamente por meio do homem fica, em última análise, votada seja à ineficácia, seja à ilusão”.[24] A história comprova isso. Daí que há esperança, nos tempos convulsivos em que vivemos, de que há hoje “novas esperanças, novas possibilidades de expressão cristã”[25], sabendo que “a Paixão de Jesus é um acontecimento sempre contemporâneo e que deve fazer parte da ação no presente”[26], pois “o Senhor não fala do passado, mas do presente, nos fala hoje, nos dá a luz e nos ensina o caminho da vida”.[27] Nesse sentido, especialmente os leigos cristãos no campo legislativo são chamados a produzir “novas e vigorosas formas de vida do que é cristão”.[28] Por isso que empunhar a bandeira da família e da defesa da vida, desde a concepção, é atualizar a resposta cristã às forças adversas que querem minar na base a força unitiva da família.

“Estamos outra vez perante um novo começo”.[29] O século 21, já na segunda década, se vê diante da pauta de valores que certamente norteará o debate e as grandes decisões do nosso tempo. O cristianismo continuará o caminho da vida, e certamente vencerá, como venceu tantos males do passado. “É precisamente uma era de um cristianismo quantitativamente reduzido que pode levar a uma nova vivacidade desse cristianismo mais consciente”.[30] De modo concreto, no aqui e agora, na dimensão da realidade penúltima, a defesa da estrutura natural da família não é uma luta em vão, mas decisiva pelo bem integral da pessoa humana, para assegurar a salvação de todos, na realidade última.

Prof. Hermes Rodrigues Nery é coordenador da Comissão Diocesana em Defesa da Vida e Movimento Legislação e Vida, da Diocese de Taubaté. Professor de Bioética do Instituto Teológico da Diocese de Campo Limpo (SP).

Bibliografia:

  1. (http://noticias.uol.com.br/ultnot/multi/2011/05/26/04024D9C3670C4B11326.jhtm?nao-aceito-propaganda-de-opcoes-sexuais-afirma-dilma-04024D9C3670C4B11326
  2. http://blogs.estadao.com.br/vox-publica/2010/10/01/corrida-de-dilma-para-recuperar-voto-evangelico-marca-reta-final-da-campanha-presidencial/;http://www1.folha.uol.com.br/poder/806590-dilma-faz-reuniao-com-evangelicos-e-catolicos-para-desmentir-boatos.shtml
  3. Valerio Zanone, Dicionário de Política, (org. Por Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino), Laicismo, p. 670; Editora Universidade de Brasília, Vol. 2, 4ª edição)
  4. (http://juliosevero.blogspot.com/2011/06/manifestacao-contra-plc-122-sofre.html)
  5. Dorotas Kornas-Biela, Direitos da Criança, Violência e Exploração Sexual, Lexicon – termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas, Pontifício Conselho para a Família, p. 219; Edições CNBB, 2007
  6. Tony Anatrella, Homossexualidade e Homofobia, Lexicon – termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas, Pontifício Conselho para a Família, p. 476; Edições CNBB, 2007
  7. Tony Anatrella, Homossexualidade e Homofobia, Lexicon – termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas, Pontifício Conselho para a Família, p. 474; Edições CNBB, 2007
  8. Catecismo da Igreja Católica, 2357, p. 531; Editora Vozes, Edições Paulinas, Edições Loyola, Editora Ave Maria, 2ª edição, 1993
  9. Marie Thèrese Hermange, Direitos das Crianças, Lexicon – termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas, Pontifício Conselho para a Família, p. 243; Edições CNBB, 2007
  10. Tony Anatrella, Homossexualidade e Homofobia, Lexicon – termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas, Pontifício Conselho para a Família, p. 474; Edições CNBB, 2007
  11. Tony Anatrella, Homossexualidade e Homofobia, Lexicon – termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas, Pontifício Conselho para a Família, p. 474; Edições CNBB, 2007
  12. Oscar Alzamora Revoredo, Ideologia de Gênero: Perigos e Alcance, Lexicon – termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas, Pontifício Conselho para a Família, p. 496; Edições CNBB, 2007
  13. Oscar Alzamora Revoredo, Ideologia de Gênero: Perigos e Alcance, Lexicon – termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas, Pontifício Conselho para a Família, p. 496; Edições CNBB, 2007
  14. Mark Mazower, Continente Sombrio – A Europa no século XX, p. 150, Companhia das Letras, 2001
  15. Theodor W. Adorno, Minima Moralia – Reflexões a partir da vida danificada, p. 77, Editora Ática, 1992.
  16. Joachim C. Fest, Hitler, p. 605, Editora Nova Fronteira, 1976
  17. Sigmund Freud, Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, p. 26, Edição Livros do Brasil Lisboa
  18. Aristóteles, Política, Coleção Os Pensadores, p. 202, Editora Nova Cultural Ltda, 1999.
  19. Joseph Ratzinger, O Sal da Terra – O Cristianismo e a Igreja Católica no Limiar do Terceiro Milênio, p. 212, Ed. Imago, 1997
  20. Joseph Ratzinger, O Sal da Terra – O Cristianismo e a Igreja Católica no Limiar do Terceiro Milênio, p. 209, Ed. Imago, 1997
  21. Joseph Ratzinger, O Sal da Terra – O Cristianismo e a Igreja Católica no Limiar do Terceiro Milênio, p. 209, Ed. Imago, 1997
  22. http://blog.cancaonova.com/felipeaquino/2011/06/02/cristaos-unidos-jamais-serao-vencidos/
  23. Joseph Ratzinger/Bento XVI, Os Apóstolos e os primeiros discípulos de Cristo, p. 22, Editora Planeta do Brasil Ltda, 2010
  24. Jacques Maritain, A Filosofia Moral – Exame histórico e crítico dos grandes sistemas, trad. de Alceu Amoroso Lima, p. 497, Livraria Agir Editora, 1973
  25. Joseph Ratzinger, O Sal da Terra – O Cristianismo e a Igreja Católica no Limiar do Terceiro Milênio, p. 212, Ed. Imago, 1997
  26. Jacques Le Goff, São Luís, p. 148, Editora Record, 2002
  27. Joseph Ratzinger/Bento XVI, Os Apóstolos e os primeiros discípulos de Cristo, p. 22, Editora Planeta do Brasil Ltda, 2010
  28. Joseph Ratzinger, O Sal da Terra – O Cristianismo e a Igreja Católica no Limiar do Terceiro Milênio, p. 212, Ed. Imago, 1997
  29. Joseph Ratzinger, O Sal da Terra – O Cristianismo e a Igreja Católica no Limiar do Terceiro Milênio, p. 212, Ed. Imago, 1997
  30. Joseph Ratzinger, O Sal da Terra – O Cristianismo e a Igreja Católica no Limiar do Terceiro Milênio, p. 212, Ed. Imago, 1997

* gentilmente enviado pelo autor.