domingo, 27 de setembro de 2009

“Quem é cego, na terra de quem tem um olho, é sábio”

“Aprendi poucas coisas que uso até hoje. Teriam sido mais úteis aulas de culinária, nutrição e primeiros socorros do que latim, trigonometria e teoria dos conjuntos.” (Kanitz)[1]

Ouvindo novamente, porque já o tinha ouvido de um doutor em Educação, que o vocábulo “aluno” significa “não iluminado”, não pude me conter em dizer que isto ‑ não obstante ser transformado quase em “dogma” dos educadores – não passa de uma pseudo interpretação arbitrária e, portanto, – o que é mais grave – enganosa, repetida sem conhecimento de causa. E quanto mais é repetida menos se sabe que é falsa[2]. Naturalmente os alunos desses educadores, nos cursos de graduação e, também, nos de pós-graduação, já por sua falta de cultura (e de latim também) se convertem numa massa de alunos, de fato, “não iluminados”, mas não porque alunos, mas exclusivamente porque seus alunos. Já dizia Sêneca que “qualquer um prefere crer a julgar por si mesmo”[3] e os dóceis alunos da área, longe de questionar um ensinamento vindo de um professor, máxime, se doutor, dificilmente não “venderão este peixe” (podre) pelo mesmo “preço”, ou circundando-o – porque não ‑ de maior valor por ser advindo de um “mestre-doutor”.
Sei lá de quem é a autoria deste jargão, mas com certeza o é de quem ‑ além de ser ignaro em latim – não fez o mínimo esforço de pesquisar a fonte do termo, nem ‑ ao menos ‑ de usar algum dicionário da língua vernácula. Por exemplo, no Dicionário Aurélio assim está: “aluno [Do lat. alumnu, primitivamente, ‘criança que se dava para criar’.] Substantivo masculino. 1.Pessoa que recebe instrução e/ou educação de algum mestre, ou mestres, em estabelecimento de ensino ou particularmente; estudante, educando, discípulo. 2.Aquele que tem escassos conhecimentos em certa matéria, ciência ou arte; aprendiz. 3.Ant. Indivíduo natural de certa terra, país ou lugar; natural, filho.”[4]
E para quem empreendesse alguma pesquisa, encontraria a obra As Etimologias[5], de Isidoro de Sevilha (c. 560-636) na qual explica: “Aluno (alumnus) deriva de alere (alimentar) e, primariamente, aplica-se a quem é nutrido (embora se possa aplicar secundariamente também a quem nutre).”[6] Fica patente que o significado do vocábulo “aluno” nada diz do que os “iluminados” educadores (doutores ou não) lhe imputaram[7].
Concomitantemente a isto nos chegou à mão o artigo de Stephen Kanitz “Aprendendo a Pensar” [8] com a mesma frase em epígrafe que – aqui ‑ fizemos nossa.
Além de ter que discordar de tudo o mais que se segue a este excerto ‑ mesmo pelo fato supra citado ‑, resolvi me deter nele já que, dada a concomitância do assunto mais acima com o artigo, não há como não rechaçar o pensamento de Kanitz e, com ele, a ambos.
Quero dizer que, justamente por oposto ao pensamento do Kanitz, se eu não soubesse um mínimo de latim (e grego) eu estaria na ignorância, bebendo do pensamento acima exposto, falso, passado voluntariamente como verdadeiro a inúmeros alunos de cursos de graduação e especialização em Educação e demais ambientes de “educação e formação” (sic!). E posso dizer que este é apenas um de tantos males que a cultura “inútil” para o Sr Kanitz nos pode livrar. Mas duvido mesmo que ele use tudo o que aprendeu de seus pais, mas não sei até que ponto menospreza isso.
Todavia julgo compreensível tal pensamento, pois o referido autor é “Mestre em Administração de Empresas, articulista da Veja e palestrante” (até encomiado como um “entre os melhores palestrantes do país”[9]; sem dúvidas, nada que não lhe valha!). Certamente ele não precisa muito do que aprendeu na escola para exercer seus ofícios embora eu indagaria sobre sua qualidade “dos melhores palestrantes” se despreza os conteúdos básicos de uma formação escolar, máxime a língua mãe daquela que ele usa para se comunicar e que é presente, inclusive, na língua inglesa a qual – suponho ‑ deve ter usado para obter seu título de Mestre, sem os conhecimentos “chulos” que normalmente temos.
Se hoje tentamos superar a mentalidade vigente e malsã de que “tudo o que se estuda precisa servir para algo” como se de toda a educação – ou de parte dela ‑ devesse resultar algum “uso” pragmático ou “produto” passível de... a que tipo de ideologia deveria ser enquadrado o autor usado justamente para superar alguma outra ideologia que se pensa ser “negativa”? Paradoxo! O que o “egrégio” palestrante diz das Artes fora de seu uso pragmático e/ou comercial? Talvez ele se esqueceu de incluir a Educação Artística, Filosofia, Sociologia e tantas outras nesta triste “lista negra” de disciplinas “inúteis” na formação escolar.
Mas se pudermos ser benévolos com nosso articulista repararemos que ele referiu que foi vítima de “um professor, normalmente mal pago e por isso mal-humorado” que “falava horas a fio, andando para lá e para cá. Parecia mais preocupado em lembrar a ordem exata de suas idéias do que em observar se estávamos entendendo o assunto ou não.”[10] Daí fica mais fácil entender o pensamento em questão: além dos conteúdos por si “inúteis”, ou “inúteis” por causa do professor, o verdadeiro problema é o professor! É o que ele dá a entender quando finaliza seu texto ao asseverar: “Na próxima vez em que seu professor começar a andar de um lado para o outro, pense no que você está perdendo. Poderia estar aprendendo a pensar.”[11] Para Perissé o articulista também denigre a figura do professor a partir de outro artigo[12]: “Stephen Kanitz, Master in Business Adminstration pela Universidade de Harvard, também atribui aos professores boa parte da responsabilidade pelo ensino que falha.”[13]
Eis então o que ele nos propõe: “aprender a pensar”! O que há de mais louvável que isto? Mas cá para nós, nos círculos pedagógicos isto de “ensinar alguém a pensar” não é lá tão bem visto também. Dizem que “ninguém ensina nada a ninguém”[14]... que saída, então, terá nosso articulista... não sei.
Mas insistindo na perspectiva benévola, Kanitz afirma: “Matemática, estatística, exposição de idéias e português obviamente são conhecimentos necessários, mas eu classificaria essas matérias como ferramentas para a solução de problemas, ferramentas que ajudam a pensar. Ou seja, elas são um meio, e não o objetivo do ensino. Considerar que o aluno está formado, simplesmente por ele ter sido capaz de repetir os feitos intelectuais das velhas gerações, é fugir da realidade.”[15] Então ele dá novo status às disciplinas vigentes: o de “solucionar problemas”. Mas, e se o aluno não tiver problemas a solucionar ou, os que tiver, forem insolúveis por uma dessas “ferramentas”? Ela volta à sua “inutilidade” ou nem sai dela, para ser mais lógico!
Volto à questão feita mais acima: a que tipo de ideologia deveria ser enquadrado o autor usado justamente para superar alguma outra ideologia que se pensa ser “negativa”? Paradoxo! A não ser que se aceite seu pressuposto: as disciplinas do ensino escolar só têm sentido se forem úteis como “ferramentas para resolver problemas” e adite-se a isto que seus professores deveram ser aquele tipo de mestre que ensinaram sem “andar de lado para outro”! Faltou, claro, dizer então como se ensina bem o que é devido em sua concepção, ou então, nas palavras de Perissé, ele deve “conhecer o pulo do gato. Caso contrário, o que vendem é gato por lebre?”[16]
Acrescente-se que para Kanitz “num mundo em que se fala de ‘mudanças constantes’, em que ‘nada será o mesmo’, em que o volume de informações ‘dobra a cada dezoito meses’, fica óbvio que ensinar fatos e teorias do passado se torna inútil e até contraproducente [sic!].”[17] Como ele não raciocinou que, se a coisa é assim, o tempo será cada vez mais abreviado, e então, nem se deverá ensinar coisa alguma? Ou as pessoas já nascerão sabendo ou não necessitarão de ensino porque o que se ensinar hoje, amanhã já perderá sua validade. Pois, como ele mesmo assevera: “No dia em que os alunos se formarem, mais de dois terços do que aprenderam estarão obsoletos. Sempre teremos problemas novos pela frente.”[18] Mas, quem disse a ele que o ensino é feito só de coisas que “mudam constantemente”? Ele foi quem arbitrou isto? Só pode! Olha, ele mesmo se esqueceu que nem ele não dá conta de ensinar a todos, ou a alguém sequer, a resolver todos os problemas da vida de seus interlocutores. Tanto mais que – para sermos fiéis a seu raciocínio – isto mesmo que ele acaba de ensinar agora estará obsoleto (felizmente, ufa!) daqui há dezoito meses (e menos ainda, espero!). Se daqui a um pouco mais de dezoito meses o que ele acaba de ensinar ainda for válido, ele será um mentiroso; se – ao contrário – o que ele acaba de ensinar não for mais válido, terá o mesmo destino do que acusa de “inútil e até contraproducente”! Então por que devemos perder tempo com ele e seus “aquilatáveis” e “perenes” (ou não?) pensamentos?
Ou ele não sabe o que é ensino, ou o professorado é um bando de pécoras a ruminar... as idéias dele, também, claro! Ou nem isto, para chegarmos às ulteriores conclusões de seu pensamento!
Para piorar o autor atribui ao professorado a confusão entre “meio e fim” no ensino das disciplinas. Salvo ele mesmo que nos atribui tal equívoco, ou algum de seus eventuais sequazes, não conheço – e nem conheci em toda a minha formação – nenhum professor que o tenha. Nem mesmo sei se o podemos notar nas hostes de “educadores de plantão”.
Ora, isto se configura um sofisma: o de imputar a outrem um erro que este não tem com o intuito de lhe derribar o pensamento, fiado em que outros não o perceberão. Nas palavras de Schopenhauer[19], é um “argumento ad auditores” que sumariamente consiste em partir de “uma objeção inválida, mas cuja invalidade só um conhecedor do assunto pode captar.” E o perigo deste tipo de sofisma consiste em “ainda que o adversário seja um conhecedor do assunto, não o são os [demais] ouvintes.” Estrategicamente “aos olhos destes [ouvintes] ele [o adversário] estará derrotado, tanto mais se nossa objeção [a do autor do sofisma] conseguir que sua afirmação [do adversário] apareça, de algum modo, sob um aspecto ridículo.” Ora “as pessoas são inclinadas ao riso fácil, e os que riem estão do lado daquele que fala.” Esta intentona costuma surtir efeito porque “para demonstrar que a objeção é nula, o adversário deverá entrar numa longa discussão e remontar aos princípios da ciência ou a qualquer outro recurso [lógico]. Mas não é fácil encontrar um auditório [e leitores] interessado nisso.”[20]
Ao cabo de tudo isto, qualquer que se deter no artigo do Sr Kanitz e pensar como ele, saberá pensar menos, ou perderá esta sua índole ao invés de “estar aprendendo a pensar”!
E isto me leva a indagar – não sem perplexidade ‑ o que faz deste tipo de gente pessoas cujos textos são lidos por educadores; e pior ainda, sem o intuito de lhes corrigir eo ipso[21] que testemunhará contra o que esses mesmos educadores julgam possuir de sólido que lhes valha a láurea de Educadores!
Como posso ainda crer que “cegos não podem guiar outros cegos”, ou que, se isto se der “ambos cairão num buraco”?
QSS

[1]KANITZ, Stephen. Aprendendo a Pensar. Artigo Publicado na Revista Veja, Editora Abril, edição 1763, ano 35, nº 31, 7 de agosto de 2002, página 20. <http://www.kanitz.com/veja/pensar.asp> acessada em 25/09/2009. O negrito é nosso.
[2] BAYLE. Pensées sus les Comètes. Vol. I, p. 10: “Dico ego, tu dicis, se denique dixit et ille. Ditaque post toties, nil nisi dicta vides” . “Eu digo, tu dizes e , no fim, o diz também ele; depois dar-lhe tantas voltas, ninguém mais vê aquilo que se disse”.
[3] “Unuscuiusque mavult credere quam judicare”. O negrito no texto é nosso.
[4] Itálicos do original.
[5] ISODORO DE SEVILHA. As Etimologias, L. X, C. I (verbete). In: LAUAND, Luiz J. Cultura e Educação na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 111.
[6] “Alumnus ab alendo vocatus, licet et qui alit et qui alitur alumnus dici potest; id est et qui nutrit et qui nutritur; sed melius tamen qui nutritur.”
[7] Cf. KOHAN, Walter O. Infância. Entre Educação e Filosofia. BH: Autêntica, 2003. p. 29-32; passim.
[8]KANITZ, Stephen. Ibdem.
[9] Stephen Kanitz. <> acessada em 25/09/2009.
[10] KANITZ, Stephen. Aprendendo a Pensar. Artigo Publicado na Revista Veja, Editora Abril, edição 1763, ano 35, nº 31, 7 de agosto de 2002, página 20. <http://www.kanitz.com/veja/pensar.asp>acessada em 25/09/2009.
[11] Idem. Ibdem.
[12] Idem. “(...) Talvez devêssemos pensar em construir mais bibliotecas antes de contratar mais professores.” In: PERISSÉ, Gabriel. Os sete pecados capitais e as virtudes da educação. Rio: Vieira & Lent, 2007. p. 25.
[13] PERISSÉ. Op. Cit.
[14] FREJAT. Nada Além. acessada em 25/09/2009. Ou se atribui a Paulo Freire: COELHO, Edgar Pereira. Paulo Freire: paradigma de uma educação inclusiva que vai além de nossos tempos. acessada em 25/09/2009: “O mesmo estilo ele [Paulo Freire] vai utilizar para falar do processo de aprendizagem, acreditando que realmente ‘ninguém ensina nada a ninguém.’”
[15] KANITZ, Stephen. Op. cit.
[16] PERISSÉ. Op. Cit. p. 26.
[17] KANITZ, Stephen. Op. cit.
[18] Idem. Ibdem.
[19] SCHOPENHAUER, Artur. Como Vencer um Debate sem Precisar ter Razão: em 38 estratagemas. Rio: Topbooks, 2003. p. 158.
[20] O negrito é nosso.
[21] aquilo mesmo