domingo, 5 de abril de 2009

A Inteligência e a Vontade

“La mayoria de los errores de los hombres procedem menos de que éstos razonem mal partiendo de principios verdaderos, que de que razonen bien partiendo de juicios inexactos o de principios falsos.” (Sainte-Beuve. Causerie du Lundi, t. X, p. 36. In: Jacques P. D’Assac. La Iglesia Ocupada. fol. de rosto)

“Errar é humano” dizemos. Mais do que humano, errar é possível a qualquer criatura inteligente. Deus não pode errar, não porque não seja livre para isso — e de fato não o é —, mas porque é livre para não errar, o que, aliás, é a maior liberdade. Sim, ser livre para não errar é a maior liberdade que um ser inteligente pode desejar mesmo nesta terra. Porém nesta vida — salvo um milagre – nunca passará de um desejo. Portanto devemos conviver com esta realidade. Porém, o fato de sermos livres para errar não quer dizer que somos obrigados a errar. A liberdade, ou mais exatamente, a possibilidade para errar é em nós o sinal de um defeito na inteligência e na vontade[1]. Já fomos criados assim? Sim, fomos criados com a possibilidade de errar embora não tenhamos sido criados no erro, pois o erro é posterior à queda original.
O erro, como dissemos, é um defeito na inteligência e na vontade. Efetivamente essas duas potências na criatura inteligente são perfeitas em sua ordem, mas não o são sempre em seu exercício. O exercício próprio da inteligência é a aquisição de verdades as quais lhes são bens correspondentes que a aperfeiçoam acidentalmente[2]. E o exercício próprio da vontade é querer o bem apresentado como tal pela inteligência[3]. A ordem exata é esta: primeiro a inteligência apreende algo sob o aspecto de bem e o apresenta à vontade que passará a apetecê-lo. Nem sempre a inteligência apreende um bem verdadeiro, e nem sempre a vontade apetece um bem verdadeiro.
A inteligência humana é falível. Pode errar no ato de julgar um objeto como bem[4]. Se isto se dá é apresentado à vontade algo como bem não o sendo de fato e esta tenderá a apetecer este falso bem. Havendo constância na ocorrência desse erro a vontade fica inclinada a apetecer o falso bem visto nela não haver juízo quanto ao quê apetecer. A vontade já acostumada a apetecer um bem falso pode não mais apetecer a um bem verdadeiro oposto ao que costumeiramente apetece. Daí mesmo apresentando um bem verdadeiro à vontade, seu apego ao bem falso pode fazê-la inclinar a este bem quase irresistivelmente contrariando já a inteligência. E será agora a força da vontade a inclinar a inteligência a julgar como bem somente o que lhe agrada, ocorrendo, se isto se der, um juízo falso. E sua repetição vem a viciar também os juízos sobre a natureza do verdadeiro bem.
Não podemos olvidar que nem tudo o que efetivamente a inteligência mostra como bem verdadeiro, mesmo o sendo, a vontade o apetece devido se este bem estiver ligado a algum desagrado — geralmente sensível —, como por exemplo tomar um remédio desagradável ou doloroso para se recuperar a saúde.
É impossível domar sempre a vontade sem que acostumemos a esta a sempre aderir ao verdadeiro bem apresentado pela inteligência. Devemos, outrossim, nos educar a, primeiramente, não emitir juízos que agradem irrefletidamente à vontade, mas a julgar de acordo com a natureza própria da inteligência, com os primeiros princípios inatos, para sempre apresentarmos à vontade bens verdadeiros. Depois, fazer adesão voluntária e constante a esses bens verdadeiros que irão facilitando cada vez mais o próprio juízo da inteligência em vista à aquisição da verdade e facilitando igualmente a adesão da vontade.
A inteligência bem educada facilita uma vontade bem adestrada na eleição do que é realmente o bem devido. Por isto, como foi asseverado na frase em epígrafe, a constante não é os erros resultarem de raciocinarmos mal partindo de princípios verdadeiros, pois estes nos levam — se não houver um influxo contrário da vontade – a conclusões verdadeiras, mas raciocinarmos bem, partindo de juízos inexatos ou de princípios falsos, ou seja, tirarmos as conclusões mais lógicas possíveis de juízos viciados pelo influxo da vontade viciada, ou de princípios falsos que só agradam à vontade e por ela é levada a inteligência ao seu exercício natural de concluir bem o indevido, porque partindo de princípios não menos indevidos.
Q.S.S.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Manuel Correia de. Filosofia Tomista. 2 a. ed. Porto: Livraria Figueirinhas, 1966.
JOLIVET, Regis. Curso de Filosofia. 12a. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1976.
______________. Tratado de Filosofia II: Psicologia. 2 a. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1967.
______________. Vocabulário de Filosofia. Rio de Janeiro: Agir, 1975.
TOMÁS DE AQUINO. Sobre o Ensino (De Magistro). Trad. Luiz J. Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
_____. Suma Teológica. Trad. Alexandre Correa. 2a. ed. Porto Alegre: EST/UCS/UFRGS/SULINA, 1980.
_____. Verdade e Conhecimento. Trad. Luiz J. Lauand e Mário B. Sproviero. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

[1] Suma Teológica, I-II, 94, 6, c.: “(...) Quanto aos preceitos segundos, entretanto, pode ser a lei natural abolida dos corações dos homens, ou por forçadas más persuasões, do mesmo modo que, no especulativo, ocorrem erros a respeito das conclusões necessárias, ou ainda por maus costumes e hábitos corruptos.”
[2] Suma Teológica, I, 107, 2, c.: “(...) a verdade é a luz do intelecto (...).”; “O bem da inteligência é a verdade, como diz o Filósofo (Ética, VI, lect. II). Ora, a inteligência pode por si mesma conhece-la, assim como todo ser pode por si mesmo realizar o seu ato natural.” (Suma Teológica, I-II, 109, 2, 3.)
[3] Suma Teológica, I, 60, 2, c.: “(...) E semelhantemente, o fim é na vontade o que o princípio é no intelecto, conforme diz Aristóteles [II Physic., lect. 15]. (...).”; I-II, 12, 1, ad 3um.: “Por certo que a vontade não ordena, mas tende contudo para alguma coisa, segundo a ordem da razão. Por onde, esse nome de intenção designa um ato da vontade, pressuposta à ordenação da razão, que ordena uma coisa para o fim.”; I-II, 8, 1, c.: “A vontade é um apetite racional. Ora, todo apetite só pode desejar o bem (...).”
[4] Suma Teológica, I-II, 14, 1, c.: “Como já se disse [q. 13, a. 1, ad 2um; , a. 3], a eleição resulta de um juízo da razão relativo ao que se deve fazer. Ora, relativamente ao que se deve fazer há muita incerteza porque os atos versam sobre os singulares contingentes, pela sua variabilidade incertos. Ora, nas coisas duvidosas e incertas, a razão não profere o juízo sem uma inquirição precedente. Logo, é necessária a inquirição da razão antes do juízo relativo ao que se deve escolher. (...).”