sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A técnica da rotulação inversa - II

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 27 de janeiro de 2011

Miguel Nicolellis é professor de neurociências na Duke University (EUA), fundador do Instituto de Neurociências Edmond e Lilly Safra (Macaíba, RN) e membro das Academias de Ciências do Brasil e da França. A esse currículo notável acrescentou-se recentemente sua nomeação, pelo Papa Bento XVI, para a Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano. O siteViomundo, do jornalista Luiz Carlos Azenha, apresenta-o agora em formato ainda mais atraente: o cientista seria vítima indefesa de uma vasta campanha de ódio e intimidação movida pela sempre abominável “extrema direita”.

Chocado e amedrontado ante a virulência assassina da campanha, o prof. Nicolellis, no tom de bom-mocismo que deve caracterizá-lo como um adepto incondicional do debate livre e democrático, alerta para os perigos da radicalização ideológica:

“O seu adversário político, ideológico, passa a ser o seu inimigo. E esse inimigo é passível de qualquer tipo de punição, até mesmo a morte. Eu não consigo imaginar que essas pessoas que propagam mensagens de ódio, vingança, violência, podem ao mesmo tempo se dizer cristãs.”

Mas em que consistiu, afinal, a mortífera campanha? Consistiu em duas coisas: Primeiro, uma notícia de dez linhas, publicada no site Rorate Coeli em 5 de janeiro (v. http://rorate-caeli.blogspot.com/2011/01/pope-names-pro-abortion-and-pro-gay.html), dando ciência de que o Prof. Nicolellis era um ardente defensor do abortismo e das políticas gayzistas (bem como, no ano passado, da candidatura Dilma Rousseff), sendo portanto um pouco estranha a sua presença numa instituição vinculada à Igreja Católica. Depois, um (1,hum) artigo escrito pelo jornalista americano Matthew Cullinan Hoffman, publicado no site Last Days Watchman (v. http://www.lifesitenews.com/news/defender-of-pro-abortion-and-homosexualist-policies-appointed-to-vaticans-a) e depois reproduzido com ou sem acréscimos e comentários nuns poucos sites cristãos, entre os quais a versão brasileira deLifesitenews, Notícias Pró-Família, dirigida pelo escritor brasileiro Júlio Severo (voltarei a falar dele mais adiante). Hoffman, que é católico, comentava: “O Papa Benedito XVI é um inflexível defensor do direito à vida e dos valores da família, sendo improvável que ele estivesse ciente da biografia de Nicolellis ao indicá-lo para a Academia.”

Houve qualquer ameaça, qualquer esboço de planos agressivos? O prof. Nicolellis confessa: Não, não houve.

Contra aquelas expressões de discordância perfeitamente inofensiva, como reagiu o Prof. Nicolellis? Debatendo com os adversários? Que nada. Ele próprio descreve os seus procedimentos argumentativos:

“O pessoal do meu laboratório contatou a Duke, alertou sobre esses sites e a polícia da universidadade já começou a monitorar o caso. A segurança do meu laboratório foi reforçada... Ninguém chega lá sem passar pela segurança.”

E adverte: ao primeiro sinal de ameaça no Brasil, chamará imediatamente a Polícia Federal.

Dentre os potenciais agressores do prof. Nicolellis denunciados pelo site Viomundo, um dos principais já está sob controle. Júlio Severo, procurado pela polícia brasileira pelo crime hediondo de ter dito e insistido que o homossexualismo é pecado e tem cura, está escondido no exterior, trocando de país como quem troca de cuecas, vivendo em extrema penúria com mulher e quatro filhos pequenos. O repórter Luiz Carlos Azenha menciona esse fato com evidente satisfação. Celebra-o também, como sinal dos progressos da democracia no Brasil, o site Fórum, do colunista Luís Nassif (http://blogln.ning.com/forum/topics/homofobia-em-preto-e-branco?page=1&commentId=2189391%3AComment%3A502681&x=1#2189391Comment502681).

As premissas lógicas embutidas nas declarações do Prof. Nicolellis e nas reportagens dos sites Viomundo e Fórum não poderiam ser mais evidentes:

1) Dizer qualquer palavra contra o homossexualismo, mesmo de maneira genérica e desacompanhada de qualquer ameaça, é incitação à violência, coisa indigna de pessoas que se dizem cristãs.

2) Um cidadão esclarecido, amante do debate livre e democrático, deve reagir a essas opiniões exibindo-se em público como vítima iminente de atentado, chamando a polícia e fazendo com que os desgraçados opinadores sejam perseguidos como bandidos, acossados como ratos.

A reação brutalmente exagerada, espera-se, induzirá o distinto publico a acreditar piamente que violentos são aqueles que emitiram as opiniões, não aqueles que mobilizaram contra eles a força armada do aparato repressor.

Se o leitor queria uma ilustração local do que escrevi sobre a técnica da rotulação inversa, aí está.

O emprego constante e obsessivo dessa técnica é uma das manifestações mais corriqueiras da inversão geral da realidade, característica da mentalidade revolucionária.

Não por coincidência, mas muito significativamente, o prof. Nicolellis, algum tempo atrás, andou esbravejando contra a “direita histérica”. Histeria, por definição, é reação hiperbólica a algum estímulo imaginário e postiço. Quando o prof. Nicolellis reage histericamente, histéricos são portanto os outros.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/110127dc.html

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quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Desejo de conhecer

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 10 de janeiro de 2011

“É natural no ser humano o desejo de conhecer.” Quando li pela primeira vez esta sentença inicial da Metafísica de Aristóteles, mais de quarenta anos atrás, ela me pareceu um grosso exagero. Afinal, por toda parte onde olhasse – na escola, em família, nas ruas, em clubes ou igrejas – eu me via cercado de pessoas que não queriam conhecer coisíssima nenhuma, que estavam perfeitamente satisfeitas com suas idéias toscas sobre todos os assuntos, e que julgavam um acinte a mera sugestão de que se soubessem um pouco mais a respeito suas opiniões seriam melhores.

Precisei viajar um bocado pelo mundo para me dar conta de que Aristóteles se referia à natureza humana em geral e não à cabeça dos brasileiros. De fato, o traço mais conspícuo da mente dos nossos compatriotas era o desprezo soberano pelo conhecimento, acompanhado de um neurótico temor reverencial aos seus símbolos exteriores: diplomas, cargos, espaço na mídia. Observava-se essa característica em todas as classes sociais, e até mais pronunciada nas ricas e prósperas. Qualquer ignorante que houvesse recebido em herança do pai uma fábrica, uma empresa de mídia, um bloco de ações da Bolsa de Valores, julgava-se por isso um Albert Einstein misto de Moisés e Lao-Tsé, nascido pronto e habilitado instantaneamente a pontificar sobre todas as questões humanas e divinas sem a menor necessidade de estudo. Se houvesse lido alguma coisa no último número da Time ou doEconomist, então, ninguém segurava o bicho: suas certezas erguiam-se até às nuvens, imóveis e sólidas como estátuas de bronze – sempre acompanhadas, é claro, das advertências cépticas de praxe quanto às certezas em geral, sem que a criatura notasse nisso a menor contradição. Caso faltassem os semanários estrangeiros, um editorial da Folha supria a lacuna, fundamentando verdades inabaláveis que só um pedante viciado em estudos ousaria contestar.

Dessas mentes brilhantes aprendi lições inesquecíveis: o comunismo acabou, esquerda e direita não existem, Lula é um neoliberal, a Amazônia é o pulmão do mundo, o Brasil é um modelo de democracia, a Revolução Francesa instaurou o reino da liberdade, a Inquisição queimou cem milhões de hereges, as armas são a causa eficiente dos crimes, o aquecimento global é um fato indiscutível, os cigarros matam pessoas à distância, o narcotráfico é produzido pela falta de dinheiro, as baleias são hienas evoluídas e o Foro de São Paulo é um clube de velhinhos sem poder nenhum.

Se continuasse a dar-lhes ouvidos, hoje eu seria reitor da Escola Superior de Guerra ou talvez senador da República.

Longe do Brasil, encontrei enfermeirinhas, caixeiros de loja e operários da construção civil que, ao saber-me autor de livros de filosofia, arregalavam dois olhos de curiosidade, me crivavam de perguntas e me ouviam com a atenção devota que se daria a um profeta vindo dos céus. Por incrível que pareça, interesse e humildade similares observei entre potentados da indústria e das finanças, figurões da mídia e da política. Até mesmo professores universitários, uma raça que no Brasil é imune a tentações cognitivas, mostravam querer aprender alguma coisa.

Aristóteles tinha razão: o desejo de conhecer é inato. O Brasil é que havia falhado em desenvolver nos seus filhos a consciência da natureza humana, preferindo substituí-la por um arremedo grotesco de sabedoria infusa.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/110110dc.html, 19/01/11

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segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Belezas criadas remetem para a Beleza suprema


Gregorio Vivanco Lopes

Quando os ecologistas criticam os males da revolução industrial — fumaça, ruídos de motores, odores pestilenciais, sujeira de graxa, etc — pode-se até concordar com eles. Não é possível acompanhá-los, porém, na doutrina miserabilista e anticivilizatória que elaboraram, e para cujos fins trabalham. Seus iniciados mais recônditos chegam mesmo a divinizar a natureza e a revoltar-se contra o Criador.

O tema fica apenas enunciado, não é aqui o lugar de explaná-lo. Queremos somente atrair a atenção do leitor para o fato de que essa doutrina anticatólica leva a uma péssima conseqüência prática, aceita pela generalidade dos ecologistas: ao referirem-se à natureza, omitem o fator beleza, portam-se como cegos em relação às maravilhas que Deus criou.

Não estamos falando sequer das artes, frutos da criatividade do homem. A pura natureza é considerada por eles tão-somente como algo em si mesmo existente, independente do que ela pode simbolizar. Tanto faz ser um delicado beija-flor como um rato repugnante, uma esplêndida rosa perfumada ou a chamada flor-cadáver, que exala um cheiro insuportável. Tudo é natureza, para eles.

O absurdo de tal tendência pode ser avaliado contemplando-se a beleza nas cinco fotos que aqui reproduzimos:

  1. Um caminho florido, protegido por árvores centenárias, mais parece uma imagem do paraíso;
  2. O sol poente, como um foco de luzes e cores, visto por detrás do tênue véu da galharia de uma árvore comum;
  3. Um nobre e belo exemplar da famosa raça de cavalos lipizzaner;
  4. Um céu de tempestade no deserto;
  5. Colônia de corais no Havaí.

Belezas como estas remetem o espírito humano para a existência de uma Beleza suprema, fonte e inspiração de todas as belezas criadas — o próprio Deus Nosso Senhor. Isto os ecologistas radicais rejeitam.

http://verd.in/e89

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sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

A crise dos trabalhadores em educação

PERCIVAL PUGGINA | 14 JANEIRO 2011

A crise dos trabalhadores em educação é uma responsabilidade deles mesmos e das ideias que abraçam.


Houve um tempo, longo tempo, tempo que cruza os séculos, em que o professor era símbolo de autoridade no pequeno e gigantesco espaço da sala de aula. Note-se que autoridade é um atributo moralmente superior ao poder, mas, quando fosse necessário, a valiosa autoridade do professor, fundada no saber e na conduta, vinha respaldada por poder. Nas últimas quatro décadas, infelizmente, a educação brasileira foi atacada em dois flancos pela esquerda delirante. E tanto a autoridade quanto o valor econômico e social do trabalho dos professores, reconhecidos há milênios em todas as civilizações, desabaram fragorosamente em nosso país.

Por um dos flancos, fustigou-a aquilo que Nelson Rodrigues chamava de Poder Jovem, acolhido entre aplausos por pedagogos de meia tigela como expressão de libertação para a criatividade. Todo poder ao jovem! A maturidade tornou-se um mal e a imaturidade, um bem a ser preservado. Era imprescindível erradicar as formas negativas da pedagogia. Coisas como certo e errado, sim e não, correção com caneta vermelha, entre outras práticas, precisavam ser substituídas por vaporosas sutilezas que não contrariassem os pupilos. Afinal, eles podem ser portadores natos de uma nova e superior forma de saber. Guardo como pérola desse disparate a frase do vate sergipano que adoça com sua voz aveludada os julgamentos do Supremo Tribunal Federal. No caso da reserva Raposa Serra do Sol, ele, o ministro Ayres Britto, em reverência à sabedoria indígena, lascou, citando Paulo Freire: "Não existe saber maior ou menor; existem apenas saberes diferentes". De fato, o veterano Marco Aurélio Mello e o garoto Dias Toffoli exemplificam saberes diferentes, quantitativamente iguais, não é ministro? E viva Paulo Freire.

Pessoalmente ainda estou à espera de que algum desses guris maleducados das universidades brasileiras, depois de tantos anos de sua completa libertação, apresentem alguma contribuição à ciência, à técnica e à cultura nacional. Ao contrário, o que se vê é o país ocupando o 93º lugar no componente educação, entre 169 pesquisados. E não me surpreenderei se encontrar por aí doutos pedagogos convencidos de que o mundo, por pura inveja, se recusa a cair de joelhos diante da qualidade muito peculiar e superior do saber construído por nossos jovens. De minha parte, vejo o sucesso sempre ao alcance dos que queimaram pestana sobre os livros, levaram a sério seus estudos ou cavoucaram com responsabilidade seus espaços na vida pública ou na iniciativa privada, mediante capacidade de renúncia ao bem atual com vistas ao investimento no bem futuro maior. Esses jovens agem no contrafluxo do deslizamento que descrevi, arquitetado por uma escola de viés marxista, que está levando três anos inteiros para alfabetizar uma criança, quando nos meus anos de curso primário se aprendia isso em seis meses de aula. A educação, caro leitor, conceitual e deliberadamente, deixou de lado seus objetivos essenciais e se voltou para formar cidadãos conscientes, politicamente engajados. Enquanto não chegam lá, os cidadãozinhos treinam sua cidadaniazinha desrespeitando e espancando os professores.

Pelo outro flanco, e no mesmo tom, os professores politicamente engajados, abdicantes de sua autoridade, assumiram-se como "trabalhadores em educação". O conselheiro tutelar, escolhido em pleito de baixíssimo comparecimento, por força de preceito contra o qual nenhuma voz se ergue com suficiência, exerce mais autoridade nas escolas do que os professores ou os diretores. Estes, a seu turno, são, também eles, eleitos num concurso de promessas e de simpatia, com participação e engajamento dos alunos. No Brasil, amigo leitor, aluno vota para diretor! Vota para reitor de universidade! E ninguém se escandaliza! Por que será que os praças não elegem os comandantes e os pacientes não escolhem os diretores dos hospitais e centros de saúde? Quando o poste passa a desaguar no cachorro e o aluno a meter o dedo na cara do professor, ainda há quem se surpreenda.

O Ministério da Educação está veiculando nestes dias um comercial com o objetivo de ampliar o interesse pela carreira do magistério. Mostra uma obviedade: os povos que melhor se desenvolvem atribuem a seus professores o principal mérito por esses bons resultados. É claro que nossos professores ganham muito pouco, mas os maiores problemas, nesse particular, estão na péssima preparação dos graduados para o magistério e na falta de recursos didáticos nas escolas. De outra parte, veja quais os países bem sucedidos em seus objetivos sociais, com mais elevado Índice de Desenvolvimento Humano, que se reportam prioritariamente a fundamentos marxistas nas salas de aula e na formação de seus educadores. Duvido que encontre algum. A crise dos trabalhadores em educação é uma responsabilidade deles mesmos e das ideias que abraçam. É responsabilidade deles mesmos, como professores dos professores nos cursos de Educação, como alunos desses cursos na recepção passiva de ferramentas de trabalho comprovadamente erradas e ineficientes, como reprodutores acríticos do mau conhecimento adquirido. É, também, uma decorrência de suas reivindicações equivocadas, da busca de uma autonomia para fazer o que bem entendem que só é menor do que o desejo dos alunos de se comportarem do mesmo modo. É uma consequência de seus engajamentos, do desmonte que produziram na própria autoridade e dos líderes que vêm escolhendo para os representar.

Mas só aos professores, o senhor diz isso? Não, digo-o com muito maior ênfase a eles porque são, de fato, como informa a propaganda do MEC, os principais responsáveis pelo desenvolvimento social de qualquer nação. Enquanto os professores se submeterem às diretrizes de quem, com um tranco ideológico e partidário, os derruba à condição de meros trabalhadores em educação; enquanto se deixarem levar pelas cartilhas da pedagogia dominante; enquanto conviverem passivamente com a destruição de sua autoridade; enquanto tomarem como inegociável planos de carreira que nivelam competentes e incompetentes; e enquanto não refugarem uma organização que transforma o acesso ao comando da Escola em concurso de coleguismo e simpatia, viverão uma crise sem fim.

http://www.midiasemmascara.org/artigos/educacao/11762-a-crise-dos-trabalhadores-em-educacao.html

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segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A QUESTÃO DO MAL

NIVALDO CORDEIRO | 03 JANEIRO 2011
Creio ser impossível discutir seriamente filosofia política sem enfrentar a questão teórica do Mal. Daí a atualidade perene da obra de Goethe, que colocou o problema de forma integral no seu poema.

Passei as últimas semanas lendo o livro Fausto, de Goethe, e vasta literatura em torno do tema. Essas leituras são destinadas a fundamentar o curso que vou dar sobre o livro neste semestre. Não é uma obra simples, porque está carregada de simbolismos cujo sentido deixou de ser percepção corrente há muito tempo, provavelmente desde que foi escrito. É, por esse aspecto, uma obra muito difícil para os leitores de hoje. No centro do poema está a questão do Mal, da sua personificação. A sociedade laica e atéia que se tornou majoritária em nosso meio sequer dá-se conta da dimensão prática dessa discussão, que só teve algum interesse no período imediatamente posterior à segunda guerra mundial e, ainda assim, sob a perspectiva atéia. Um exemplo conspícuo é a obra de Hanna Arendt, tentando entender o que se abateu sobre a Europa e, em especial, sobre o povo judeu. Creio que ela fracassou por tentar responder à questão escapando ao desafio teológico colocado pelos eventos.

(Hanna Arendt deu grande impulso à linha teórica que reforça a tese dos direitos humanos como fundamento da filosofia política e jurídica enquanto instrumento para combater o totalitarismo, sem perceber que esta tese já havia sido empolgada pelos cultuadores do mesmo totalitarismo então vencido. Vemos agora no Brasil o exemplo de como essa linha teórica desaguou na justificação da dissolução dos valores ocidentais, fundamentando todas as mazelas que precederam a eclosão do totalitarismo. Como herdeira dos valores iluministas e ateus, Arendt deixou-se cair na armadilha e certamente ficaria espantada sobre o que se fala em seu nome para justificar as novas gerações de "direitos", que na prática levam ao oposto de uma sociedade juridicamente organizada de forma sã, abrindo o flanco para que novos totalitarismos emirjam.)

Definitivamente, o problema do Mal se manifesta sobretudo na dimensão política, por causa da escala cataclísmica. Ele, todavia, é também uma experiência pessoal e ouso meditar que a vida humana, ao fim e ao cabo, é uma coleção de experimentos e confrontos com o Mal, mesmo que a pessoa individualmente não tenha consciência do que se passa consigo mesma.

Os filósofos e cientistas políticos que viveram no pós-guerra não esconderam seu pasmo e seu terror diante dos acontecimentos do totalitarismo que se abateu sobre o mundo na primeira metade do século XX. O Estado tornou-se o grande e mais poderoso instrumento pelo qual as personalidades demoníacas puderam praticar as maldades no limite do paroxismo. Creio ser impossível discutir seriamente filosofia política sem enfrentar a questão teórica do Mal. Daí a atualidade perene da obra de Goethe, que colocou o problema de forma integral no seu poema. O objeto deste comentário, todavia, não é o FAUSTO, mas dois textos papais acerca do tema. Dois papas e duas visões do Mal, que, sob uma ótica estrita, são visões opostas, mas que se completam em algum grau.

O primeiro texto é de autoria de João Paulo II (MEMÓRIA E IDENTIDADE, Editora Objetiva, 2005), sendo o que mais nos interessa os seus dez primeiros capítulos. O essencial do livro está no relato da experiência do papa na sua Polônia natal e o confronto que ele pessoalmente fez com as duas formas de totalitarismo mais letais que a Europa viveu: o nazismo e comunismo. João Paulo II adotou a linha de pensamento que, de certa forma, é a oficial e preponderante na Igreja Católica, que vê o Mal como mera privação do Bem, na linha inaugurada por Santo Agostinho. É uma abordagem intelectual do Mal e creio ser ela insuficiente e inadequada para dar conta da sua realidade nefanda.

O segundo texto é um discurso do Papa Paulo VI proferido em 1971 e que pode ser acessado na página do professor Felipe Aquino. Nesse discurso famoso o Mal assume a forma personificada que está no poema de Goethe, deixando de ser uma abstração filosófica para ser uma figura atuante. Suas primeiras palavras foram cortantes: "Atualmente, quais são as maiores necessidades da Igreja? Não deveis considerar a nossa resposta simplista, ou até supersticiosa e irreal: uma das maiores necessidades é a defesa daquele mal, a que chamamos Demônio". E, mais à frente: "O mal já não é apenas uma deficiência, mas uma eficiência, um ser vivo, espiritual, pervertido e perversor". Creio ser esta a mesma percepção de Goethe e que se encontra amplamente amparada nos textos bíblicos, desde o Gênesis até às Escrituras do Novo Testamento. Basta notar que uma das qualidades de Jesus em suas ações era o poder com que expulsava os demônios, tendo sido ele próprio tentado por Satã.

A visão intelectualista de Santo Agostinho e de João Paulo II deixa escapar o fato essencial de que o Mal é um sujeito que opera, tem vontade própria e capacidade de desencaminhar os homens individualmente, mas ele tem sobretudo a capacidade de influir sobre os homens de poder e de conhecimento. Ele sempre age por meio de homens e mulheres que se dispõem a fazer o pacto mefistofélico, como bem descrito na obra de Goethe. O enorme poder que os Estados atuais são detentores acaba por se tornar armas mortíferas contra a humanidade. Nesse sentido, os perigos dos tempos de hoje são maiores do que aqueles que antecederam as duas grandes guerras. Entender o Mal passou a ser elemento essencial para compreender como o mundo hoje está se movendo.

É no Livro de Jó que Goethe buscará inspiração para seu poema. Jó é um personagem típico do Antigo Testamento, homem temente a Deus e capaz de resistir de forma santificada às investidas do Demônio. Sua vitória sobre o Mal é completa por força dessa santidade. Em Goethe, todavia, vemos um tipo diferente de homem: o moderno intelectual que se cansou da própria ciência e está mergulhado no tédio da razão. É a criatura que desdenha do criador e que busca no trinômio sexo, poder e dinheiro os meios para escapar de sua infelicidade de ser criado. Diferentemente de Jó, Fausto se entrega voluntariamente ao Demônio, pratica toda sorte de maldades e morre para, ao final, ser resgatado, ainda assim, do fogo dos infernos. Um final cristão.

Os preferidos de Deus no Antigo Testamente eram grandes homens santos, capazes de resistir ao Mal, como Jó, José e Daniel. Mas nem sempre. Devemos nos lembrar de Davi, aquele que praticou iniqüidades, mas manteve-se como um preferido de Deus. O mesmo pode ser dito de seu filho Salomão.

João Paulo II lembrou no seu magnífico texto que o limite imposto ao Mal é a Redenção, exemplificada na própria encarnação do Deus Vivo. Mas essa é uma conclusão ex post facto e está mais vinculada à trajetória do indivíduo isolado. Sua finalidade é escatológica, não serve para a ação prática cotidiana dos viventes. Outra questão é como o Estado se torna o instrumento para se fazer no flagelo e no verdugo das massas, experiência não conhecida antes do século XX. Voltamos então ao problema da política e do Estado como interfaces e instrumentos da ação do Mal. Se os homens podem fazer alguma coisa para deter da eficácia do Mal em larga escala é por meio da política, agindo organizadamente sobre os centros de poder. Penso ser impossível dissociar a discussão teológica da práxis em sociedade. Mas como discutir o assunto quando ninguém nem mais acredita em Deus? Quem haverá de acreditar na ação do Demônio? Essa será talvez a maior vitória do Negador e o desamparo absoluto das gerações atuais diante do Nefando.

http://www.midiasemmascara.org/artigos/conservadorismo/11732-a-questao-do-mal.html, 03/01/2011

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